A invenção do Milênio - Luis Fernando Veríssimo
Qual foi a maior invenção do milênio?
Minha opinião mudou com o tempo. Já pensei que foi o sorvete, que foi a
corrente elétrica, que foi o antibiótico, que foi o sufrágio universal, mas
hoje ― mais velho e mais vivido ― sei que foi a escada rolante. Para muitas
pessoas, no entanto, a invenção mais importante dos últimos mil anos foi o tipo
móvel de Gutemberg. Nada influenciou tão radicalmente tanta coisa, inclusive a
religião (a popularização e a circulação da Bíblia e de panfletos doutrinários
ajudaram na expansão do protestantismo), quanto a prensa e o impresso em série.
Mas há os que dizem que a prensa não é deste milênio, já que os chineses
tiveram a idéia de blocos móveis antes de Gutemberg, e antes do ano 1001, e que
― se formos julgar pelo impacto que tiveram sobre a paisagem e sobre os hábitos
humanos ― o automóvel foi muito mais importante do que a tipografia. O melhor
teste talvez seja imaginar o tempo comparativo que levaríamos para notar os
efeitos da ausência do livro e do automóvel no mundo. Sem o livro e outros
impressos seríamos todos ignorantes, uma condição que leva algum tempo para
detectar, ainda mais se quem está detectando também é ignorante. Sem o
automóvel, não existiriam estradas asfaltadas, estacionamentos, a Organização
dos Países Exportadores de Petróleo e provavelmente nem os Estados Unidos, o
que se notaria em seguida. É possível ter uma sociedade não literária, mas é
impossível ter uma civilização do petróleo e uma cultura do automóvel sem o
automóvel. Ou seja: nós e o mundo seríamos totalmente outros com o Gutemberg e
sem o automóvel, mas seríamos os mesmos, só mais burros, com o automóvel e sem
o Gutemberg.
Minha opinião é que as grandes invenções não são as que saem do nada, mas as
que trazem maneiras novas de usar o que já havia. Já existia o vento, faltavam
inventar a vela. Já existia o bolor do queijo, faltava transformá-lo em
penicilina. E já existia a escada, bastava pô-la em movimento. Tenho certeza
que se algum viajante no tempo viesse da antiguidade para nos visitar, se maravilharia
com duas coisas: o zíper e a escada rolante. Certo, se espantaria com o avião,
babaria com o biquíni, admiraria a televisão, mesmo fazendo restrições à
programação, teria dúvidas sobre o microondas e o celular, mas adoraria o caixa
automático, mas, de aproveitável mesmo, apontaria o zíper e a escada rolante,
principalmente esta. Escadas em que você não subia de degrau em degrau, o
degrau levava você! Nada mais prático na antiguidade, onde escadaria era o que
não faltava. Com o zíper substituindo ganchos e presilhas, diminuindo o tempo
de tirar e botar a roupa e o risco de flagrantes de adultério e escadas
rolantes facilitando o trânsito nos palácios, a antiguidade teria passado mais
depressa, a Idade Moderna teria chegado antes, o Brasil teria sido descoberto
há muito mais tempo e todos os nossos problemas já estariam resolvidos ―
faltando só, provavelmente, a reforma agrária.
É claro que esse tipo de raciocínio ― que invenções fariam mais falta, não num
sentido mais nobre, mas num sentido mais prático ― pode ser levado ao exagero.
Não seria difícil argumentar que, por este critério, as maiores invenções do
milênio foram o cinto e o suspensório, pois o que teriam realizado Gutemberg e
o restante da humanidade se tivessem de segurar as calças por mil anos? Já ouvi
alguém dizer que nada inventado pelo homem desde o estilingue é mais valioso do
que o cortador de unhas, que possibilitou às pessoas que moram sozinhas cortar
as unhas das duas mãos satisfatoriamente, o que era impossível com a tesourinha.
Tem gente que não consegue imaginar como o homem pôde viver tanto tempo sem a
TV e uma geração que não concebe o mundo sem o controle remoto. E custa
acreditar que nossos antepassados não tinham nada parecido com teleentrega de
pizza.
Também depende dos critérios. Se o fato mais importante do mundo no fim do
milênio é a globalização, então devemos honrar o homem que começou tudo isso:
Gengis Khan. Foi ele que convocou as tribos das estepes e avançou contra o
Ocidente, unindo a Europa no susto. Antes da ameaça dos mongóis, no século 13,
a Europa era uma coleção de Estados monárquicos e papais em conflito, sem
qualquer identidade continental ou interesse no restante do mundo. Gengis e
seus ferozes descendentes mudaram tudo isto. Criaram entre os europeus a idéia
de uma identidade comum, despertaram o seu interesse no Oriente e em outros
povos e foram os responsáveis indiretos pelo Renascimento, no século seguinte.
E dizem que foi um neto do grande Khan, ao reclamar da falta de gosto da comida
européia antes de decapitar um garçom, que deflagrou a grande busca por
especiarias que levou aos descobrimentos, ao comércio internacional e à
civilização como nós a conhecemos. Nós, literalmente, não estaríamos aqui se
não fosse o Gengis Khan. E a mulher do milênio, claro, é a Patrícia Pillar.